Ketchup e mostarda, sempre exatamente nas mesmas proporções - este é o
segredo do dispensador que Albert Okura exibe na primeira vitrine de
seu museu. Em San Bernardino, Califórnia, no edifício onde funcionou a
primeira lanchonete do McDonald's, Okura conseguiu reunir quase tudo o
que a cadeia de fast-food já produziu. Há copos de papel, guardanapos,
brinquedos do McLanche Feliz - tudo o que os consumidores deixavam para
trás nos anos dourados da América.
Os objetos o fazem lembrar do apogeu de San Bernardino, a cidade onde
os irmãos Richard e Maurice McDonald abriram sua primeira lanchonete.
Naquela época, 1948, as pessoas vinham de todas as partes do país para
ver a loja. Uma dessas pessoas foi Ray Kroc, um vendedor de batedeiras
para milk-shake que mais tarde transformaria a lanchonete numa
corporação avaliada em bilhões de dólares.
Será que o mesmo fenômeno poderia voltar a acontecer? Sessenta anos
depois, será que Okura, ele próprio o fundador de uma rede de fast-food
especializada em frango, poderia ser descoberto da mesma forma?
Dívidas. No dia 1.º de agosto de 2012, San Bernardino pediu
concordata. Hoje, a cidade localizada a uma hora de automóvel de Los
Angeles é uma das mais pobres e mais violentas dos EUA. A comunidade
onde nasceu uma das maiores histórias de sucesso da América nem sequer
tem condições de pagar o salário da polícia, e está apodrecendo em meio
ao lixo.
A situação é catastrófica para os que não arrumaram as malas e se
mudaram. Também é o exemplo da falência de um país que não aproveitou os
anos de prosperidade para sustentar um governo que funcionasse. Os
recursos são escassos em todos os níveis, da capital Washington aos
Estados e cidades. Os EUA deixaram de investir em infraestrutura,
abalando os alicerces que proporcionam a todos habitantes a chance de
ter um pedaço do sonho americano.
San Bernardino foi a terceira cidade da Califórnia a declarar-se
inadimplente no ano passado. A primeira foi Stockton, em junho, seguida
por Mammoth Lakes. A maioria das cidades americanas afunda em dívidas e,
ao contrário do governo federal, a possibilidade de a prefeitura
conseguir empréstimos é muito limitada. Os habitantes estão sentindo os
efeitos disso.
A analista Meredith Whitney, que previu o que aconteceria com o
Citigroup e o Lehman Brothers, alertou, no fim de 2010, que o colapso
das cidades americanas era iminente. Na época, cerca de 100 prefeituras
corriam o risco de quebrar, disse, e os prejuízos poderiam ser de várias
centenas de bilhões de dólares. O endividamento dos municípios, que
chega a um total de US$ 2 trilhões, ainda é inferior ao total da dívida
de US$ 16 trilhões do governo federal. Mas a crise está levando a uma
redução considerável dos serviços.
Cortes. San Bernardino, por exemplo, já não tem condições de pagar os
salários do funcionalismo público. Para reduzir custos, a cidade
demitiu cerca de 20% dos funcionários municipais, e os que restaram
tiveram de aceitar um corte de 10% nos salários. O pessoal do gabinete
do prefeito foi reduzido de nove para duas pessoas, e três das quatro
bibliotecas da cidade foram fechadas, assim como dois centros de combate
à violência. Em breve, talvez a polícia tenha de pegar emprestado os
veículos de patrulha das cidades vizinhas - o que não constitui
exatamente uma boa notícia numa cidade que, em 2012, registrou mais de
32 assassinatos e é uma das mais violentas dos EUA.
San Bernardino, com uma população de 213 mil habitantes, não dispõe
de US$ 45 milhões para o atual exercício fiscal e já não consegue
cumprir nem mesmo suas obrigações fundamentais, como o pagamento das
pensões dos funcionários aposentados da prefeitura, que foi simplesmente
suspenso.
A crise financeira reduziu consideravelmente as fontes de renda da
prefeitura. O que inclui o imposto sobre o consumo, mas principalmente
os impostos sobre edificações e outros imóveis, que atualmente perderam
praticamente todo o seu valor.
O número de liquidações de imóveis residenciais é três vezes e meia
superior à média nacional, e o declínio da cidade é dia a dia mais
visível. Detroit pinta os jardins das casas abandonadas com tinta verde,
para dar a impressão de que a grama continua crescendo. Mas San
Bernardino não tem o dinheiro nem para comprar a tinta.
Beena Khakhria é uma corretora de imóveis da cidade. Ela trabalha
para a ONG Neighborhood Housing Services of the Inland Empire (NHSIE),
que tenta salvar as construções abandonadas. Em geral, ela se candidata à
aquisição de uma casa liquidada e, quando consegue o imóvel, procura
reformar o que está em piores condições, substituindo janelas podres e
pisos infestados de cupins. Depois procura compradores, que devem
comprovar que pretendem residir na cidade.
É uma tentativa de salvar algo que já está além da possibilidade de
salvação, por exemplo, a casa de Rose Street, do outro lado da Rodovia
Interestadual 210. A estrada é um monstro de cascalho e concreto, com
oito faixas de tráfego. Beena gostaria de comprar a habitação de três
quartos e dois banheiros. Seu valor de US$ 56 mil corresponde a um
décimo do preço de um apartamento nas melhores zonas de Los Angeles. Mas
alguém vai querer morar numa casa em frente a uma rodovia?
Entretanto, Beena não tem as mesmas preocupações dos corretores de
cidades mais habitáveis. "A localização é perfeita", afirma. "Para os
meus clientes, é uma vantagem ter uma rodovia tão perto. O fato de o
bairro não parecer completamente morto os faz sentir mais seguros."
Os investimentos do governo americano na economia do país vêm
declinando desde os anos 70. Em 1975, os bens de propriedade do Estado
representavam 72% do PIB do país; hoje, esse total é inferior a 55%. Os
prefeitos das cidades americanas iniciaram projetos de construção de
estádios ou de centros para a comunidade, às vezes, usando recursos
emprestados, mas não existe um plano prioritário. O governo federal
deixou de empreender projetos em larga escala, como a Barragem Hoover,
dos anos 30, e o sistema de rodovias interestaduais dos anos 50.
Enquanto isso, em muitos lugares, prefeitos, funcionários públicos e
policiais simplesmente passaram a usar dinheiro público para fins
particulares, concedendo-se salários cada vez mais altos e criando novos
privilégios pessoais. San Bernardino tem bombeiros que ganham até US$
100 mil ao ano. Ao mesmo tempo, as contribuições do município para o
fundo de pensões subiram. Agora, são o triplo do que eram há dez anos, e
devoram 15% do orçamento da prefeitura, deixando o governo da cidade de
mãos atadas.
Mas em vez de procurar solucionar esses problemas, o debate público
se concentra em uma única coisa: a redução dos impostos. Em San
Bernardino, o imposto predial é de 1%. Era mais alto, mas foi reduzido
por meio de um referendo. A decisão agora está custando caro. Por
exemplo, a cidade não tem um moderno sistema de transportes que permita
ligar seus habitantes à vizinha Los Angeles sem que eles precisem
dirigir pelas autoestradas congestionadas.
Sem dúvida, foi à dependência da infraestrutura pública que o
presidente Barack Obama se referiu quando declarou, durante a campanha
eleitoral, que o sucesso dos empreendimentos não é possível sem um
governo forte, e disse aos donos de empresas: "Não foram vocês que
fizeram isso".
O comentário de Obama referia-se à ideia de que cada indivíduo é o
único responsável pelo seu sucesso ou fracasso pessoal. Os políticos
republicanos continuam bloqueando a maioria das tentativas de aumentar
impostos. Na realidade, o país está em crise porque defende há tempo
demais a ideia de que a responsabilidade cabe única e exclusivamente ao
indivíduo.
Sonhos. Albert Okura, o dono do museu McDonald's e da rede Juan
Pollo, tornou-se uma das poucas figuras de sucesso da cidade. Ele gosta
que seu nome saia nos jornais para fazer propaganda de sua empresa, como
aconteceu na festa de aniversário do McDonald's. Querendo parecer
bem-sucedido, ele alugou um carro esporte e o deixou no estacionamento
do museu. Infelizmente, o carro foi roubado. Na manhã seguinte, o nome
de Okura estava nos jornais, como ele queria - mas sob a manchete "Carro
Roubado".
Fonte: www.estadao.com.br