Segundo o pesquisador, o jornalista continua tendo uma identidade idealizada. "Se você perguntar à população o que ela pensa sobre o jornalista, vai se falar que é um sujeito que denuncia, que sabe das coisas, enfim, a representação social é positiva. Por outro lado, a identidade real deste jornalista, sua vida concreta, é precarizada.
Então há um
gap, uma distância muito grande entre a identidade pessoal a representatividade social. Isso torna o jornalista muito inseguro e frustrado", diz Heloani.
Desde 2003, José Roberto Heloani investiga a interface entre saúde e a profissão jornalística. Naquele ano, o doutor em psicologia e professor titular da Universidade de Campinas (Unicamp) entrevistou cerca de 20 jornalistas do eixo Rio-São Paulo, com foco em qualidade de vida.
Após estudo intermediário de 2005 - com espaço amostral ampliado para mais de 70 profissionais - concluiu em 2012 o mais recente deles, com mais de 250 jornalistas, aprofundando temas como saúde mental, identidade e subjetividade, e incidência de assédio moral e sexual.
Suas conclusões são duras. De dez anos para cá, aumentam entre os profissionais da área as incidências de depressão, infidelidade conjugal e uso de drogas, principalmente, cocaína e anfetamina, além do fenômeno que ele chama de "naturalização do assédio".
"Hoje, no país, há cerca de seis grandes grupos de comunicação. Ou seja, o jornalista precisa ter muita coragem para fazer uma denúncia formal de assédio se quiser permanecer no mercado. Além disso, trocar de profissão, quando desejado, não é fácil.”
Outro problema apontado por Heloani é a distância entre a experiência real e a representatividade social da profissão. "Enquanto a imagem do jornalista é idealizada e positiva na sociedade, sua vivência diária é precarizada. Isso os torna mais inseguros e frustrados".
Confira a íntegra da entrevista à IMPRENSA:
IMPRENSA – Quais foram as novidades da última pesquisa?
ROBERTO HELOANI – Os casos de assédio moral e sexual tornaram-se mais rotineiros, embora já existissem. Mas, o problema vai além. Se, em outras categorias profissionais, o grau de denúncias de assédio tem aumentado – como a dos bancários, por exemplo, que acompanho há muitos anos –, no jornalismo, o assédio aumentou, mas o número de pessoas que recorrem à Justiça diminuiu.
Isso pode ter a ver a competição acirrada do mercado jornalístico?
Não tenho nenhuma dúvida disso. No Brasil, há seis grandes grupos de comunicação. Você precisa ter muito coragem para fazer uma denúncia formal de assédio se quiser permanecer no mercado. A pessoa pode até pensar em mudar de área, ir para assessoria ou área acadêmica, mas nenhuma alternativa é fácil.
O que suas pesquisas revelaram sobre o estresse?
Hoje, o jornalista é um profissional multifocal. O que pode parecer muito interessante, mas, na prática, as coisas não são bem assim. É um profissional que se tornou muito mais estressado do que era. Primeiro, ele não pode dominar só uma mídia. Ele é um profissional que precisa ser repórter, fotógrafo, motorista, às vezes, cuidar da própria segurança. Então, hoje, há maior incidência de um estresse patológico. Na primeira pesquisa, não víamos muita gente em estado de pré-exaustão ou exaustão, que é o caso mais grave. Na mais recente, começamos a ver pessoas debilitadas, em pré-exaustão, inclusive recorrendo mais a drogas lícitas e ilícitas.
Aumento de que ordem? Quais drogas, especificamente?
Apesar de ser difícil estabalecer um percentual, diria que aumentou cerca de 25%. O álcool é a droga mais recorrente, além de café e energético em alta medida. O problema é que aumentou o uso de drogas estimulantes, como cocaína e anfetamina. É uma forma de o cara conseguir escrever quatro ou cinco matérias em veículos diferentes, dormir três ou quatro horas, e dar conta do recado. Muitas vezes, sem tempo de ir ao psicólogo ou ao médico, o cara ouve falar de alguém que conseguiu ter um pique legal com “uma cheirada numa carreira” e aí ele perde o pé. É cada vez maior o número de pessoas que trabalham intoxicadas.
Como as dificuldades da profissão têm impactado a esfera pessoal e familiar dos profissionais?
Se há uma coisa que não se altera nas três pesquisas que realizei é que as mulheres, principalmente, queixam-se muito de como a profissão reflete na relação familiar e na relação com o companheiro. Primeiro, elas se queixam que não é fácil namorar com alguém que não seja da área. Começa a pintar ciúmes ou a convivência se torna muito esporádica. Já vi muitos jornalistas que só se encontram no aeroporto.
Então, pode-se dizer que a profissão jornalística dificulta uma relação estável e fiel?
Muito. Mas, a queixa dessas pessoas é que elas, justamente, não querem isso. Elas querem um relacionamento, um companheiro. Não é questão de moralismo, mas o patológico está no fato de que a pessoa não quer trair. Se a pessoa está satisfeita com isso, pode até ser saudável. Mas, quando você se queixa disso – porque não é o que você quer, mas o que você pode fazer –, aí você começa a afetar a esfera subjetiva e, a longo prazo, até a saúde mental.
Investigou também a identidade e subjetividade do jornalista. O que concluiu?
O jornalista continua tendo uma identidade idealizada. Se você perguntar à população o que ela pensa sobre o jornalista, vai se falar que é um sujeito que denuncia, que sabe das coisas, enfim, a representação social é positiva. Por outro lado, a identidade real deste jornalista, sua vida concreta, é precarizada. Então há um gap, uma distância muito grande entre a identidade pessoal a representatividade social. Isso torna o jornalista muito inseguro e frustrado.
Quais as consequências disso?
Ele se sente decepcionando com toda a população que o idealiza. Na última pesquisa, ficou muito clara a questão da culpa. Com a dificuldade na carreira, a pessoa começa, em sua narrativa pessoal, a puxar fatos do passado que são pueris. "Ah, eu me lembro que um redator me chamou para trabalhar e eu não fui." E isso dura anos. Ou seja, é infantil. Aí ele pode cair numa armadilha de achar que cometeu um erro estratégico no passado. E, agora, com maiores sacrifícios, ele decola. É uma maneira de ele pagar uma conta que ele tem com ele mesmo. A gente chama isso de dívida psíquica. É aí que ele se arrebenta para valer.
Há saída para atenuar todos esses aspectos de tensão?
Deixar a profissão não é tão simples, demanda um planejamento a longo prazo. A única maneira de diminuir isso é começar a dialogar mais sobre isso, e nisso os sindicatos da categoria têm um papel importante. É uma categoria que continua sendo muito desunida.
A fraqueza política dos sindicatos tem a ver com isso?
Acho que contribui. É uma situação complexa porque, na medida em que as pessoas acabam não acreditando no poder das associações, estas associações acabam se tornando fracas. Uma associação não é uma abstração. Como eu não colaboro, a associação continua sendo fraca e ineficaz. Como não há uma correlação positiva de forças com essas grandes corporações que estabelecem o modo de vida do jornalista, elas trabalham totalmente independente da legislação. A legislação é clara: são cinco horas, mais duas. Mas eu nunca vi um caso de um jeito trabalhando sete horas. Eu vi 10, 12, 14 horas. Essas organizações acabam atuando à revelia da legislação. Ou você começa discutir isso para valer, ou não muda nada. Até porque a nova geração de jornalistas têm, realmente, aceitado qualquer jogo.
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