terça-feira, 27 de julho de 2010

No Brasil, TV digital ainda é para poucos

No Observatório do Direito à Comunicação (Texto de Jacson Segundo - Observatório do Direito à Comunicação)

É certo que a admiração do brasileiro por futebol fez aumentar o consumo de televisores digitais no país. Projeções do Fórum SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre) indicam que apenas neste ano, impulsionadas pela Copa do Mundo, as vendas devem superar os 2 milhões de aparelhos (entre TVs, celulares e conversores digitais) vendidos até o fim do ano passado, fazendo com que esse número chegue a 8 milhões até o encerramento de 2010. No entanto, a política de expansão da TV digital no Brasil segue aquém do que se esperava. Parcela significativa da classe média segue alheia à digitalização e, para os mais pobres, esta sequer parece ser uma perspectiva.

Passados dois anos e meio da primeira transmissão em sinal digital no país, a população não tem encontrado motivos suficientes para adquirir um televisor com o receptor digital acoplado ou um conversor externo. Para o ministro das Comunicações, José Artur Filardi, a transição está ocorrendo sem muitos problemas. “Está normal e muito acima da expectativa”, considera. Os dados citados pelo ministério são que, no Brasil, a cobertura do sinal digital já está disponível em 38 cidades – entre elas, 21 capitais. Atinge uma área em que vivem 70 milhões de pessoas.

Porém, os 8 milhões de receptores que deverão estar em funcionamento até o fim do ano são menos de 10% deste total. Além disso, os números eventualmente divulgados pelo Fórum SBTVD ou pelos fabricantes não atestam, como se poderia crer, que o Brasil acelera o processo de digitalização da TV aberta. Pelo contrário, o que se observa é que a compra de televisores adaptados à tecnologia digital é feita por aqueles que querem aproveitar o serviço de alta definição oferecido pela TV por assinatura, da qual boa parte já é assinante.

A Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA) não tem dados que atrelem à venda das televisões com conversores ao número de assinantes de TV paga que possuem o serviço de HD (alta definição), mas o presidente da entidade, Alexandre Annenberg, diz que essa é uma constatação evidente. “Conheço muito pouca gente que tem [aparelhos] HD só para a TV aberta”, comenta.

Apesar da falta de levantamentos oficiais, não é preciso tanto esforço para perceber que o crescimento da venda dos grandes e caros televisores adaptados à tecnologia digital coincide com o aumento do número de pessoas que começaram a usar os serviços em HD na TV paga em 2010. A Net, por exemplo, informa que, nos primeiros três meses deste ano, houve um crescimento de 70% de assinantes que usam o HD em comparação com os últimos três meses do ano passado. A oferta da alta definição pela empresa existe desde o fim de 2007.

O perfil do assinante de TV paga no Brasil é bem definido. Apesar de ter havido um aumento no número de assinaturas (10% este ano em comparação com os cinco primeiros meses de 2009) o serviço ainda não chega a 5% dos municípios e a 10% da população. Alem disso, continua concentrado nas classes A e B. De acordo com dados de 2008, a penetração da TV paga foi de apenas 9% na classe C. Em outras palavras, é este o perfil dos brasileiros e brasileiras que podem, hoje, assistir os canais de TV aberta com a qualidade e as funcionalidades prometidas com a criação do SBTVD.

Custos da conversão

Uma das razões para que a TV digital ainda se encontre nesse patamar é o custo gerado para o cidadão que, sem ser assinante de TV paga, queira adaptar-se à era digital. A aposta original do governo foi deixar a popularização dos set top box – os conversores externos que, conectados a qualquer televisor e uma antena UHF, recebem o sinal digital aberto – por conta das regras de mercado. A ideia é que o preço da “caixinha” fosse reduzido à medida que as vendas fossem aumentando e gerando escala de produção, o que não ocorreu.

Hoje, os conversores custam entre R$ 400 e R$ 600 - bem mais que os U$ 100 imaginados pelo ex-ministro das Comunicações Hélio Costa. Este é o valor mínimo a ser desembolsado por quem quer receber o sinal com melhor qualidade no seu atual televisor. Porém, para aproveitar o diferencial prometido pela TV digital – a alta definição – o investimento tem de ser bem maior.

Se a opção for trocar o aparelho por um novo, uma TV de 32'' com conversor embutido sai por cerca de R$ 1.700. Ainda assim, apesar de receber uma imagem com qualidade próxima a de um DVD, ela não opera em alta definição (Full HD). Para isso, é preciso que o consumidor adquira uma TV com resolução igual ou maior que 1920 pixels na horizontal por 1080 pixels na vertical, o que só é possível em aparelhos com 42'' ou mais.

Entre fazer um grande investimento para ter acesso a 5 ou 6 canais em HD ou gastar o valor de um salário mínimo para apenas receber estes canais sem sombras ou chuviscos, a grande maioria da população decidiu não aderir ao sistema digital. E governo e indústria do setor não estão se entendendo em relação à política de popularização da TV digital no país.

Diante das vendas irrisórias de conversores, o governo anunciou no começo do ano uma adaptação da política industrial da Zona Franca de Manaus exigindo que as indústrias lá instaladas passassem a embutir conversores nos aparelhos HD ready (prontos para alta definição). Este ano, os modelos de 42 polegadas ou mais devem sair de fábrica com o conversor e, a partir do ano que vem, a exigência vale para todos os modelos produzidos.

De início, houve reclamação, mas as empresas de eletrônicos resolveram apostar no receptor embutido nos aparelhos do tipo HD ready (prontos para alta definição). É mais lucrativo vender um televisor de grandes proporções do que a caixinha. Agora, os poucos modelos de conversores existentes estão sumindo das lojas.

Mudando novamente de ideia, o governo resolveu discutir um incentivo para a produção de conversores. De acordo com o ministro das Comunicações, José Artur Filardi, a preocupação maior do governo neste momento deve ser tomar iniciativas que consigam abaixar os preços dos conversores digitais. “O que a gente agora tem que se focar é em relação ao set top box. Realmente quem tem uma televisão que está em boas condições não vai jogar fora. Então a gente tem que ver se consegue através de incentivo ou qualquer medida possa popularizar mais o set top box”, afirma o ministro.

Em reunião realizada na segunda-feira (21) com a Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros), o assessor especial da Casa Civil André Barbosa afirmou que a meta é a elaboração de um programa que incentive a fabricação de 15 milhões desses aparelhos entre 2011 e 2013 voltados para as classes D e E – chegando a R$ 200,00. A contrapartida governamental seria a desoneração tributária (como PIS e Confins) dos produtos. A Eletros não quis se pronunciar sobre o assunto.

Curiosamente, a queda nos preços dos aparelhos poderá ocorrer mais por políticas criadas pelos países que vêm sendo convencidos pelo governo brasileiro a adotar o padrão tecnológico brasileiro (ISDB-T) como base para a digitalização da TV. A Argentina é o exemplo mais adiantado. Além de executar ações de fomento à produção, o governo argentino está distribuindo conversores digitais para a população de baixa renda. A ideia é distribuir 1,2 milhões de aparelhos antes do fim do ano. Naquele país, as transmissões começaram apenas no fim de 2009.

Pouca diferença

Além dos custos para a adaptação, há também um problema de cobertura do sinal em algumas cidades que já fizeram a transição para o digital, o que tem ocasionado reclamação e até devolução de conversores. Em municípios importantes como São Paulo e Rio de Janeiro existem áreas em que não é possível assistir à TV digital. Para resolver o problema, que pode se repetir em outros locais e especialmente em regiões acidentadas, é preciso que as empresas coloquem retransmissores para amplificar o sinal. “É um desafio, mas as emissoras estão investindo em retransmissores”, garante Liliana Nakonechnyj, coordenadora do módulo de promoção do Fórum SBTVD.

Mas a falta de interesse da população pela TV digital não passa apenas pelos altos preços dos aparelhos – sejam eles televisões, conversores ou celulares – ou a cobertura insuficiente. A inexistência de novidades significativas desestimula as pessoas a saírem da transmissão analógica. Duas delas seriam centrais para isso: a interatividade e a oferta de mais conteúdo. Ambas não fazem parte da realidade do projeto de governo e empresas para a digitalização.

A aposta do Brasil para a geração de recursos interativos interessantes é o software aberto Ginga, desenvolvido por pesquisadores brasileiros. Depois de anos de estudo, ele passou pela aprovação da União Internacional de Telecomunicações (UIT) e, a partir desse reconhecimento internacional, sua implantação está sendo acelerada. No entanto, ainda não existem conversores com o Ginga integrado. Só algumas televisões com receptores internos contam com ele. Além disso, as emissoras ainda não estão produzindo muitos aplicativos de interação.

Outra questão em aberto é a forma com que a população vai interagir com a TV. O modelo mais simples é por meio do próprio controle remoto, a partir de opções disponíveis na tela. Porém, algo ainda muito aquém das possibilidades que podem surgir. Possivelmente, o uso do canal de retorno – que é o que permite a interação, inclusive com recursos próximos aos da internet – pode se dar pelo uso das redes de telecomunicações, como as de telefone fixo, móvel e internet. Se assim for, é provável também que essa será uma funcionalidade paga, o que pode ser mais um entrave para a popularização da TV digital.

Outro detalhe determinante é que a digitalização não trará aos telespectadores mais e diversificados conteúdos, o que provavelmente geraria mais interesse. O padrão japonês adotado no Brasil – chamado de nipo-brasileiro pelo governo – permite que isso seja feito, já que ele possibilita a compressão do sinal. A quantidade de programações (canais) da TV aberta poderia ser multiplicada por quatro. No entanto, há dois problemas.

O primeiro é que a distribuição de canais para serem usados pelas atuais emissoras transferirem suas programação para o sistema digital, feita a partir da publicação do Decreto 5.820/06, impede, na prática, a entrada de novos atores na TV aberta. Isso porque o tamanho da faixa destinada às emissoras no sistema analógico – de 6 Mhz – foi mantido para o sistema digital. Nesta largura de banda (o tamanho do canal), poderiam ser transmitidas pelos menos outras 4 programações. O decreto está sendo alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), que deve ser julgada em breve pelo Supremo Tribunal Federal [saiba mais].

A segunda questão é a regulamentação da multiprogramação. Até agora, a regra estabelecida pelo Ministério das Comunicações diz que apenas as emissoras exploradas pela União poderão lançar mão da multiprogramação. A medida casa com interesses da Rede Globo, que já manifestou seu desinteresse em usar tal recurso, já que a divisão de conteúdos poderia gerar dispersão de audiência e de arrecadação publicitária. Outras emissoras, como Bandeirantes e RedeTV!, pressionam pela liberação do uso do recurso exatamente para tentar fazer frente à Globo. Por enquanto, menos um motivo para ir às compras.

Latifúndio e lentidão

O resultado das decisões governamentais é que as atuais emissoras que estão operando com o sinal analógico e o digital ao mesmo tempo não utilizam a maior parte dos 6 Mhz que receberam do governo para a transição do sistema. “É um latifúndio digital”, critica Arthur William, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. E emenda: “A TV digital no Brasil não foi planejada. A postura do governo de deixar o mercado regulamentar é o erro. O empresário vai fazer no tempo dele. Para ele não é vantajoso acelerar agora.”

Para Arthur, é possível que, mantendo-se o atual ritmo, o Brasil não cumpra o prazo previsto para a transição completa para o sistema digital, que é 2016. “O que pode salvar esse prazo é a Copa de 2014 e as Olimpíadas, em 2012”, avalia.

O professor de Comunicação da Universidade Federal de Sergipe César Bolaño acredita que o ritmo de transição segue lento como se previa. “Era natural que não houvesse demanda porque o modelo não é sensivelmente diferente do que já existe”, diz Bolaño.

Para ele, um processo de democratização da TV não está ligado necessariamente à tecnologia e sim ao modelo da comunicação no país. “O problema não é a TV digital é a TV aberta brasileira. Ela tem um modelo de funcionamento privado. A tecnologia não democratiza. A não ser que a TV pública consiga no campo digital o que não conseguiu na TV aberta”, opina César Bolaño. A tecnologia inclusive, segundo o professor, pode aprofundar as diferenças entre os grandes e pequenos veículos de comunicação. “Quanto mais tecnologia, mais custo. Ela tende a reforçar as posições de quem detém mais capital.”

O professor, porém, ressalta que a política do governo brasileiro de conquistar novos países para adoção do padrão nipo-brasileiro tem sido acertada. “O aspecto positivo é tentar criar uma condição sul-americana do ponto de vista industrial”, observa Bolaño. O último país para que o Brasil exportou seu padrão foi as Filipinas. Com isso, já são dez países que aderiram ao ISDB-T. A maioria deles está na América Latina. Até julho, a previsão é de que a África decida seu padrão e o governo brasileiro está em diálogo com alguns países do continente.

LEIA TAMBÉM:

* Promessa da TV digital, interatividade ainda engatinha
* Preços e desinformação desestimulam compra de TV digital
* TV digital móvel demorará alguns anos para ser popular

Nenhum comentário:

Postar um comentário